domingo, 25 de julho de 2010

O sexismo e a resistência à aplicação da Lei Maria da Penha

Esse texto foi publicado originalmente na Folha Feminista nº 66, publicação da SOF Organização Feminista, em novembro de 2007.

Maria Lúcia Silveira e Sônia Coelho*

A resistência que encontramos recentemente,por parte de juízes, em aplicar a Lei nº 11.340, mais conhecida como “Lei Maria da Penha”, revela o sexismo que impregna não só a cultura dos operadores do direito, mas também, de vários aparatos do Estado. A Lei foi produto de discussão democrática, que partiu da experiência e das dificuldades de se combater a violência contra mulheres.

O juiz de Sete Lagoas (MG), Edílson Rodrigues, por exemplo, expressou seu preconceito e clara misoginia quando afirmou, em sentença, que “o mundo é e deve continuar sendo masculino”. Ao justificar a autoridade e o poder masculino, inclusive com certa violência contra as mulheres, tornou límpido o fundamento da dominação e da violência sexista que ainda vigora na cultura patriarcal.

É por isso que devemos olhar a questão da violência contra a mulher numa perspectiva além das medidas judiciais apontadas na Lei. É preciso valorizar mais os aspectos educativos, preventivos, configurados numa rede de proteção social e de políticas públicas de um lado, e de outro, no controle social disso pelo movimento de mulheres, garantindo-lhe fortalecimento e respaldo dos poderes públicos, aí sim, fazendo valer a Lei em toda sua plenitude.

Ressaltar a prevenção

Passado um ano da promulgação da Lei, é importante retomar os fundamentos da violência sexista e fazer um traba-lho educativo que envolva toda a sociedade, já que a resistência e mesmo a oposição vêm de várias instituições, inclusive dentre as próprias delegacias da mulher. É preciso dar mais ênfase aos aspectos preventivos da Lei que, no artigo 8°, aborda “medidas integradas de prevenção”, e em suas diretrizes, assegura que os meios de comunicação social devem pautar-se pelo respeito a valores éticos e sociais, assim como propõe campanhas e programas educacionais nas escolas e na sociedade em geral.

A escola é um importante agente socializador, portanto, trabalhar conteúdos referentes a relações de gênero, violência sexista e racismo ajudará uma nova geração a compreender que o mundo não é naturalmente masculino, como afirmou o juiz, mas é construído pela sociedade, que forma as mulheres para serem submissas, objetos de posse sob poder dos homens, e a violência sexista tem base nas desigualdades existentes entre homens e mulheres.

Com as mulheres, o movimento deve amplificar a formação, os grupos de discussão, as oficinas sobre as bases da violência e estimular os laços de confiança e solidariedade entre as mulheres, para que elas possam, a partir de sua realidade, buscar alternativas de enfrentamento à violência, pois a lei sozinha não protege a vida das mulheres. E que essas ações, protagonizadas pelas mulheres nos bairros e outros espaços públicos, possam colocar a toda a sociedade a tarefa de alterar as relações entre os sexos e construir relações igualitárias. É preciso também que os movimentos sociais e outros homens exerçam a solidariedade na luta contra a violência, porque o repúdio de seus iguais pode criar constrangimento para aqueles que continuam praticando e fazendo apologia da violência.

Estudo e reflexão teórica

Pesquisadora dessa temática, Heleieth Saffioti nos ajuda a refletir sobre os fundamentos da violência contra mulheres, que muitos técnicos e profissionais insistem em tratar com um humanismo genérico que não afeta as relações sociais concretas, seja porque sacralizam a família, seja porque crêem nos caminhos da negociação de conflitos entre desiguais. Além disso, muitos profissionais patologizam o agressor. Segundo Saffioti, no livro Gênero, patriarcado, violência (2004):

“Para quem define a violência doméstica em termos do estabelecimento de um domínio dos seres humanos situados no território do patriarca, não resta dúvida que a hierarquia começa no chefe e termina no mais frágil de seus filhos, provavelmente filhas. (...) Apesar de que ‘as mulheresfiguram em número importante dentre as vítimas de violência e em número reduzido dentre os autores de violência’(Collin, 1976), há muitas mulheres que maltratam seus filhos, elementos inferiores na hierarquia doméstica. Não apenas o homem, mas também a mulher está sujeita à síndrome do pequeno poder, sendo uma freqüente autora de maus tratos contra crianças.Como afirma Welzer-Lang (1991), a violência doméstica é masculina, sendo exercida pela mulher por delegação do chefe do grupo familiar. Como ela ‘é o primeiro modo de regulação das relações sociais entre os sexos’ (p.23), é desde criança que se experimenta a dominação-exploração do homem (patriarca), seja diretamente, seja usando a mulher adulta. A função de enquadramento (Berteaux, 1977) é desempenhada pelo chefe e seus prepostos. Assim, o gênero, a família, o território domiciliar contêm hierarquias, nas quais os homens figuram como dominadores-exploradores, e as crianças,como os elementos mais dominados-explorados. Nos termos de Welzer-Lang, ‘a violência doméstica tem um gênero: o masculino,qualquer que seja o sexo físico do/da dominante’(pp.73-74)”.

Saffioti, na mesma obra, enfatiza em suas análises: “O consentimento social para que os homens convertam sua agressividade em agressão não prejudica, por conseguinte, apenas as mulheres, mas também a eles próprios. A organização social de gênero, baseada na virilidade como força-potência-dominação, permite prever que há um desencontro amoroso marcado entre homens e mulheres. As violências física, sexual, emocional e moral não ocorrem isoladamente. (...) Sobretudo em se tratando de violência de gênero, e mais especificamente, a intrafamiliar e doméstica, são muito tênues os limites entre quebra de integridade e obrigação de suportar o destino de gênero traçado para as mulheres: sujeição aos homens, sejam pais ou maridos. Dessa maneira, cada mulher colocará os limites em um ponto distinto do continuum entre agressão e direito dos homens sobre as mulheres. Mais do que isto, a mera existência dessa tenuidade representa violência (op.cit.,p.75)”.

Combater o sexismo deve ser o motor para enfrentar as resistências à Lei Maria da Penha, e a conscientização e a auto-organização das mulheres é que melhor pode se encarregar dessa tarefa. É nas trilhas do feminismo que essa luta se revigora.

* Maria Lúcia Silveira e Sônia Coelho integram a SOF e a Marcha Mundial das Mulheres

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